Abstract
Português do Brasil
Quero fazer uma reflexão sobre a “unidade” dentro do conceito de “ecumenismo”. Este tema foi uma grande paixão para o pensador argentino José Míguez Bonino durante toda a sua vida, e a sua obra, de forma geral, contém vários insights profundos que gostaria de recuperar nesta edição comemorativa de sua vida. O tema da unidade da humanidade é um horizonte geral para o tema mais particular do ecumenismo dentro do pensamento cristão. A ideia da unidade evolui ao longo do caminho, começando por uma enunciação da necessidade de os cristãos estarem unidos, até perceber a necessidade de considerar a humanidade como um todo dentro do conceito de “unidade”. Esta evolução da ideia foi colocando várias questões a respeito de temas como a missão das igrejas, os desafios da diversidade religiosa para a unidade, a identidade cristã, o diálogo entre as religiões e etc. O tema da identidade é, particularmente, de uma importância e atualidade crucial, assim como o pluralismo religioso.
Español
Quiero hacer una reflexión sobre la “unidad” dentro del concepto de ecuménico. Este fue una gran pasión para el pensador argentino José Míguez Bonino a lo largo de su vida. Su obra en forma general contiene varias ideas profundas que me gustaría recuperar en esta edición conmemorativa de su vida. El tema de unidad de la humanidad es un horizonte general para el tema particular del ecumenismo dentro del pensamiento cristiano. La idea de la unidad evoluciona en el camino, comenzando con una enunciación de la necesidad de que los cristinos estén unidos, hasta que llega a darse cuenta de la necesidad de considerar a la humanidad como un todo dentro del concepto de “unidad”. Esta evolución de la idea fue colocando varias interrogantes con respecto a temas como la misión de las iglesias, los desafíos de diversidad religiosa para una unidad, la identidad cristiana y el diálogo entre las religiones, etc. El tema de identidad es particularmente de una importancia y actualidad crucial, como lo es el pluralismo religioso.
José Míguez Bonino: Teologia para o Século XXI
Carlos José Beltrán[1]
Quero fazer uma reflexão sobre a “unidade”. Este tema foi uma grande paixão para o pensador argentino José Míguez Bonino (JMB) durante toda a sua vida, e a sua obra, de forma geral, contém vários insights profundos que gostaria de recuperar nesta edição comemorativa à sua vida. O tema da unidade da humanidade é um horizonte geral para o tema mais particular do ecumenismo dentro do pensamento cristão. A ideia da unidade evolui ao longo do caminho, começando por uma enunciação da necessidade de os cristãos estarem unidos, até perceber a necessidade de considerar a humanidade como um todo dentro do conceito de “unidade”. Esta evolução da ideia foi colocando várias questões a respeito de temas como a missão das igrejas, os desafios da diversidade religiosa para a unidade, a identidade cristã e o diálogo entre as religiões, etc. O tema da identidade é, particularmente, de uma importância e atualidade crucial, assim como o pluralismo religioso. Neste texto procura-se refletir sobre três assuntos: o ecumenismo, o lugar do ecumenismo no pensamento de José Míguez Bonino, e a maneira como o seu pensamento nos desafia a continuar pensando o tema hoje.
A. José Míguez Bonino: Um Pensador Ecumênico
O pensador argentino se preocupou pela questão da “unidade,” que no cristianismo atende ao nome de ecumenismo. Mas a sua visão não foi a de uma simples preocupação pela “unidade eucarística” ou “celebrativa” da fé cristã. Por trás da preocupação ecumênica encontrava-se a relação entre “direitos humanos” e “fé cristã”, ou, em um sentido mais amplo, as implicações de doutrinas cristãs como “reconciliação” ou “salvação”, para o contexto humano maior. Em última instância, para José Míguez Bonino, trata-se de levar a sério o desafio de que a fé cristã seja relevante para o contexto histórico no qual vivemos. Gostaria de pensar que não fosse necessário justificar diante dos nossos leitores a necessidade de que o evangelho seja relevante para a questão dos direitos humanos; da humanidade e o seu bem-estar em geral. Vertentes tão diferentes como a do evangelho integral, ou a perspectiva da libertação, coincidiriam em dizer que o evangelho deve ser relevante para a história e a vida humana hoje.
Ora, esta preocupação pelos direitos humanos desde a teologia e a fé, está sustentada por uma visão específica da realidade histórica da humanidade: Emílio Castro (1985), lendo a JMB a refere como a “oikumene conflituosa”. Dentro do contexto do projeto cristão do ecumenismo, esta visão da realidade teve consequências centrais para a compreensão da dimensão local e global da busca por “unidade”. Tal compreensão em JMB enfatizará o aspecto local sem deixar de ver o global como pano de fundo do cenário histórico mundial. O local, em cujo seio se manifestam concretamente os conflitos da “oikumene conflituosa” estaria sendo priorizado diante de uma tendência de definir agendas “de cima para baixo”, desde as preocupações institucionais e dos dogmas e tradições reconciliáveis (ou não) no cristianismo. Emílio Castro, em sua leitura dos textos de Míguez Bonino, comenta:
A preservação da unidade da igreja, ainda no terreno doutrinário, não pode se fazer através de uma agência central, senão através de um processo permanente de consulta [e] inclusiva manifestação do espírito de comunhão que configura o próprio ser da igreja e testemunha da presença do Espírito Santo.[2]
Pois bem, nesta leitura que Emílio Castro faz de Míguez Bonino encontramos alguns pontos centrais do desafio teórico/prático que representam o objetivo ecumênico. Se o projeto de preservação da unidade de uma instituição como a igreja não deve proceder de maneira centralizada, nem por mecanismos hierárquicos “de cima para baixo”, cabe perguntar: como é que o ecumenismo cristão lidou com isso? Indo a frente, faz-se necessário perguntar: qual é o lugar da unidade da igreja no caminho que procura a unidade da humanidade? Será que o ecumenismo, compreendido como busca pela unidade da igreja, considera importante e abrange a unidade de toda a humanidade, a reconciliação do mundo? É lamentável que ainda dentro de muitos ambientes evangélicos o desconhecimento da perspectiva ecumênica faça com que as igrejas e as suas lideranças se posicionem de forma negativa a respeito do assunto. Deixo de lado este problema para tratar dele em outra ocasião. Detenhamo-nos agora em alguns comentários que construam um breve relatório histórico da problemática do ecumenismo, particularmente o ecumenismo cristão.
B. O Surgimento do Ecumenismo Moderno[3]
A história do movimento ecumênico moderno tem nas instituições missionárias dos séculos XVIII e XIX as primeiras manifestações ecumênicas; é a origem mesma do movimento ecumênico.[4] Sigamos o percurso que faz Antonio Gouvêa Mendonça nos antecedentes históricos do ecumenismo. Segundo Mendonça, os antecedentes do movimento ecumênico têm lugar num longo período aonde vai se desenvolvendo e tomando corpo; tal período iria desde a reforma até o congresso de Edimburo, 1910. O iluminismo, a reação do protestantismo e o seu divisionismo são colocados no cerne daquele processo de gestação. O processo é analisado também à luz de três vertentes: o liberalismo teológico, o movimento conservador conversionista e a restauração católica, sendo o movimento conservador aquele que estará na frente do movimento ecumênico.
A necessidade de unidade do protestantismo conversionista missionário encontrara ao mesmo tempo no movimento teológico liberal e no fortalecimento do catolicismo seus principais desafios, assim como os elementos teológicos e sociológicos que serão os futuros componentes do ecumenismo como um todo.[5]
A busca pela unidade surge então da necessidade de unir esforços em torno ao objetivo da evangelização do mundo. Era preciso um acordo na fé cristã que fosse este ponto de partida. “Partiu-se, então, em busca de uma ‘fé evangélica’, isto é, uma fé simples e original que pudesse ser aceita por todas as denominações e que identificasse todos os indivíduos como cristãos genuínos. (…) Essa tentativa de unidade doutrinária essencial viria a ser conhecida como o movimento ‘evangelical’”.[6] Originado na Inglaterra, foram estes evangélicos deste movimento os primeiros criadores de sociedades missionárias. Mas, quais eram os componentes essenciais desta visão de fé que seria o ponto de partida para se lançar na aventura missionária? Mendonça continúa afirmando: “… erigiu-se uma espécie de theologia perennis no protestantismo que dura até hoje, aliás, ultimamente muito reforçada pela onda contemporânea de conservadorismo”.[7]
Esta matriz teria sua origem na teologia de João Wesley; ela seria assimilada pelo movimento “evangelical”, servindo à necessidade de uniformizar a mensagem missionária, mas, com consequências negativas para a teologia e a eclesiologia. Com efeito, “uma vez estabelecidas e aceitas as doutrinas essenciais da fé cristã, a teologia, tal qual uma nova escolástica, estava feita e acabada. Era só pregá-la e agir em conformidade com ela”.[8] Assim, pouca reflexão teológica e eclesiológica seguiu tais iniciativas missionárias. Aqueles que se afastavam daquela matriz foram estigmatizados com frequência sob nomes como liberais, ou modernistas. O que estava definido serviu para informar muitas comunidades ao longo dos anos, e hoje o panorama confirma a afirmação de Mendonça sobre a duração daquela teologia, “até hoje”.
Tal teologia consistia basicamente numa explanação sobre a visão do mundo em resposta ao contexto acima assinalado (iluminismo, racionalismo, liberalismo teológico, etc.) cujo foco era a doutrina da conversão, e que permitia ao cristão se inserir de maneira segura e fiel à sua fé no novo mundo moderno. Mendonça retrata esta matriz do pensamento evangélico assim:
O mundo era originalmente bom, mas a civilização o estragou; entretanto, é possível fazer com que a civilização se torne um lugar razoavelmente bom para o homem [o ser humano] e, para isso, certas normas têm de ser seguidas; converter-se é bom para o indivíduo e bom para o mundo. E o reino de Deus do evangelho? Esse fica para quando este mundo acabar. Esta teologia é imbatível porque consola os despossuídos ao mesmo tempo em que dá sustentação às estruturas do mundo moderno. É uma teologia romântica e ao mesmo tempo muito racional.[9]
O tempo transcorreu e, paradoxalmente com o que ocorrera na Inglaterra de João Wesley e seu cristianismo voltado à práxis e a inserção do cristão no seu contexto social, as ênfases na mensagem das missões protestantes teriam como resultado no individuo que acolhia a nova fé, um forte distanciamento do mundo circundante, somado a maioria das vezes a um forte anti-catolicismo. Isto era devido, em termos de Mendonça, a duas características principais nesta mensagem missionária: ela era conversionista e doutrinária, o que se traduzia sempre numa “mudança da mente” e uma “mudança da vida” que acabava distanciando o sujeito do seu entorno. “Este mundo era o lugar do pecado, do erro, antagônico, portanto, ao universo da verdade que o converso passava a aceitar.”[10]
Podemos, então, dizer com Mendonça, que, embora estejam no “panprotestantismo” (termo que ele usa) as origens do movimento ecumênico, nele também estão os germes dos futuros conflitos, no seu separatismo, e nas suas disputas ideológicas.[11] Entretanto, talvez Mendonça não tivesse conseguido perceber que não poderia ser de outra forma. Com efeito, ocorre o mesmo que ocorrera com o termo ecumenismo na sua origem, onde se faz referência a universalidade, mas sempre com caráter restritivo ou exclusivista. O ecumenismo nasce em meio a um pensamento religioso, a uma religião particular, o cristianismo, que, por sua vez, manifesta desde seus inícios uma vocação universalista. Contudo, paradoxalmente, “uma igreja que se assume como católica (universal) deixa claro o seu caráter exclusivista.”[12]
É claro, o ecumenismo nos seus primórdios vai ser bastante diferente daquele que vai se configurando com o decorrer do tempo até hoje. Assim, o paradigma estabelecido no início, associado ao congresso de Edimburgo 1910 vai ser avaliado em épocas posteriores de maneira que quase lhe é negado o seu caráter de ecumenismo.[13] Mas esta ambiguidade decorrente da evolução no desenvolvimento do conceito é talvez inerente à proposta ecumênica, e seu ideal em termos mais amplos. Além da unidade entre os cristãos, o ideal ecumênico coloca questões que eventualmente transcendem os limites da religião cristã. Se ele nasce, num sentido, da necessidade dos cristãos de testemunhar a sua fé (referência aos movimentos missionários), o fato da unidade da humanidade se colocar no horizonte de tal projeto, eventualmente se contrapõe ao ideal missionário, na medida em que este é concebido em termos proselitistas, ou até poderia ser dito, imperialistas.
C. Inciativas Ecumênicas
O movimento ecumênico, através da visão de alguns dos seus militantes, vai percebendo esta amplitude da proposta ecumênica, e vai enxergando mais além das concepções clássicas do ecumenismo protestante. Mas as iniciativas não parecem dar-se conta dos paradoxos que contem a proposta ecumênica. Analisemos estas propostas e os seus paradoxos.
Macroecumenismo
Tomamos neste ponto a dissertação de mestrado de Jair Alves sobre Macroecumenismo. O autor desta dissertação coloca desde o inicio o ecumenismo em termos da “… ‘Busca pela unidade da igreja’, enquanto tendência para a unidade da humanidade”,[14] propondo que os passos pequenos (a unidade da igreja) contribuem para a melhoria das relações humanas.
Jair Alves assinala que “Só em 1968 (CMI, Uppsala) uma compreensão mais abrangente do ecumenismo tornou-se progressivamente aceita.”[15] O período da gênese do macroecumenismo coloca-se no ano de 1989 a 1992 dentro do contexto das Assembléias do Povo de Deus (APD). Ora, é notório que para Jair Alves o macroecumenismo se apresenta como o horizonte do movimento ecumênico, atingindo, além de algumas contradições que ele reconhece, o ideal mais abrangente do ecumenismo (a unidade de toda a humanidade). A seguir, 6 pontos onde é descrito o macroecumenismo nesta dissertação:
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- Fidelidade as nossas raízes indo-afro-americanas e a serviço da vida de nossos povos;
- Experiência do ecumenismo como espaço de encontro, de respeito, de desafios que surgem da relação entre as igrejas, as culturas, as religiões e o movimento popular.
- Unidade na diversidade a serviço da luta pela libertação dos nossos povos, na prática cotidiana da defesa da vida;
- Não confessional, mas sim um espaço de diálogo entre crentes com abertura aos não crentes que assumem o projeto da vida.
- Uma força popular, indígena, negra, mestiça, dos movimentos sociais, das forças populares, contra a impunidade;
- Um espaço de convocatória essencialmente leigo.[16]
A meu ver, a impossibilidade (teórica e prática) desta iniciativa do macro-ecumenismo salta à vista neste resumo, não só pelas dificuldades internas que ali são expostas, mas também pelas descrições com que o autor acompanha a sua argumentação. Ele afirma: “O ecumenismo (…) nasceu historicamente como iniciativa das igrejas. Portanto, só pode ser descrito a partir das igrejas”.[17] Se só pode ser descrito a partir das igrejas como é que podem se concluir pontos tão distantes da realidade eclesial como os seis pontos acima citados? Com efeito “… O ideal ecumênico (…) sugere a restauração da unidade humana, a paz e o diálogo baseado na fraternidade justiça e integridade da criação…”;[18] só que a igreja parece não ter muitas possibilidades de uma participação direta nesta iniciativa, quando nenhuma realidade eclesial, estritamente falando, figura dentro dos objetivos da proposta; alias, nem as igrejas estão alinhadas naquela perspectiva, pois talvez os interesses ali apontados não são os interesses de muitas igrejas, pelo menos não na prática geral das igrejas evangélicas. Consideremos mais um parágrafo:
As igrejas participam neste movimento [ecumênico] totalmente conscientes de que a oikumene pertence a Deus e de que é Ele que nos conclama a reconhecer o que faz às suas criaturas e criação. Esta sua ação está baseada no fundamento e na perspectiva daquilo que Ele próprio fez em Cristo, o legítimo centro do movimento Ecumênico. Por isso a aspiração pela unidade da igreja encontra-se indissoluvelmente ligada à aspiração pela unidade da humanidade.[19]
Observemos, para depois questionar, três coisas neste parágrafo: (1) “a oikumene pertence a Deus”. Ok, mas, qual Deus? A oikumene pode ser designada como pertencente a Deus somente desde a perspectiva desse Deus. No entanto, tal perspectiva não poderia ter pretensões universalistas, visto que o Deus cristão não é o único Deus na oikumene. (2) o fato de ser o Cristo o centro do movimento ecumênico terá de ser explicado em termos da universalidade a que estão se referindo os pontos acima citados. Os pontos falam de realidades políticas, econômicas, sociais, culturais. Se vai se falar em universal talvez não seja o Cristo o propriamente universalizável, mas a realidade humana retratada em cada uma dessas realidades designadas dentro da proposta “macro-ecumênica”. (3) Se a unidade da igreja está indissoluvelmente ligada à aspiração pela unidade da humanidade, tal unidade estaria mediada pela participação (inclusão) da humanidade dentro da realidade da igreja e os seus parâmetros e critérios axiológicos. Poderíamos dizer que teocentrismo, cristocentrismo, eclesiocentrismo são problemas centrais desta proposta.
Julio de Santa Ana, no seu livro Ecumenismo e Libertação, descreve quatro iniciativas ou projetos de unidade entre os cristãos. O projeto das “Famílias confessionais”, por exemplo, adotado também pela Federação Luterana Mundial, é um deles. Porém, para Santa Ana, projetos desse tipo não atingem o alvo da unidade de toda a oikumene. No dizer de Santa Ana, “… não parece essa a unidade pela qual Cristo orou para sua comunidade e para aqueles que crêem em seu nome. (…)”, visto que “é um projeto de unidade [o das “Famílias confessionais”] que não abrange todas as esperanças e expectativas de todos os povos da terra”.[20] Com efeito, este projeto se refere só à unidade entre as famílias confessionais, o que fica bastante longe do ideal desejado para toda a humanidade. Estes projetos evidenciam de maneira mais direta a impossibilidade de começar pela unidade da igreja como ponto de partida para alcançar a unidade da humanidade. Demos, porém uma olhada outros dois projetos que Santa Ana comenta. Consideraremos, pois, o projeto do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), e depois o chamado ecumenismo de base, ou projeto ecumênico popular.
1.Conselho Mundial de Igrejas (CMI)
O CMI é uma instituição que agrupa as igrejas sob “o compromisso comum de Confessar o Evangelho de Cristo, proclamando-o e o apresentando ao mundo”.[21] Considera que as relações entre as diferentes instituições que agrupam as igrejas nos diferentes países são muito importantes, “imprescindíveis para fazer progredir a causa da unidade cristã como testemunho do propósito de Deus de “recapitular todas as coisas em Cristo” (Ef 1,9-10).[22] Mas na sua caminhada, ele foi descobrindo que a oikoumene transcende às igrejas, tendo todo a ver com todo o mundo habitado.[23] Assim, o seu projeto vai se transformando na perspectiva de “criar uma plataforma, uma base, sobre a qual seja possível ‘um diálogo universal de culturas’”.[24] Isto dirigiu a sua atenção para as causas das divisões no mundo, enxergando os obstáculos que impedem o diálogo. Este diálogo em condições de igualdade é entendido como pressuposto para a unidade da humanidade. Estes obstáculos foram eventualmente concebidos em termos estruturais; “o CMI veio tomando sistematicamente o partido das causas dos fracos, dos pobres, dos oprimidos, dos que sofrem por causa da injustiça”.[25] É assim que o conceito de libertação perpassa por toda esta argumentação; isto o coloca numa tradição cristã que não é reconhecida como muito “confiável” pela grande maioria das igrejas evangélicas latino-americanas, a Teologia da Libertação. Seja como for, ele vai afirmar: “a busca da unidade da igreja não pode ser separada do empenho pela unidade da humanidade”;[26] fica claro, porém, que tal unidade é enxergada desde a perspectiva cristã (perspectiva particular) embora seja enunciada em termos de Justiça e Paz (perspectiva mais universal)[27]. Podemos enxergar o paradoxo de novo aqui?
Perguntamos, por um lado, até que ponto a causa da unidade cristã não se assemelha à causa das “famílias confessionais”? Mas por outro lado, não parece ficar claro, já de entrada, o seu paradigma teológico sobre o pluralismo religioso? A perspectiva do CMI sobre as religiões, assunto cardinal para se conceber a união de todos os povos,[28] parece uma cilhada difícil de ser percebida. Paul Knitter, no seu livro sobre as teologias das religiões[29] situa a posição teológica do CMI a respeito do pluralismo em um lugar instável entre o modelo classicamente conhecido como exclusivista e os outros modelos (inclusivista, ou pluralista), o que demonstra a delicadeza e complexidade da questão. Com certeza, se o CMI quiser ainda albergar as diferentes Igrejas Cristãs (com atenção particular à Evangélica), ele não poderá se afirmar facilmente além do modelo do inclusivismo, ou até mesmo, do modelo exclusivista. É, talvez, um beco sem saída, inerente à estrutura do projeto.
2.Ecumenismo de base (projeto ecumênico popular)
Consideremos agora o projeto ecumênico popular. Tomaremos algumas notas do livro de Gerhard Tiel, Ecumenismo na perspectiva do Reino de Deus, que pretende ser uma análise do movimento ecumênico de base. O que é ecumenismo de base? “Ecumenismo de base significa a prática comunitária de pessoas que estão comprometidas com uma libertação estrutural e que, no decorrer dessa ação comum e com base nela, fazem a experiência de uma unidade que, também em questões de fé, transcende as igrejas e independe de dogmas.”[30]
Na sua perspectiva, este tipo de ecumenismo pode ser entendido como “ecumenismo integral”, e é o que ele chama de ecumenismo na perspectiva do reino de Deus.[31] No entanto, é difícil enxergar nele o objetivo da unidade dos cristãos, incluindo o seu aspecto institucional: a unidade das igrejas. Citemos mais duas coisas sobre este tipo de ecumenismo, a respeito das suas dimensões sociopolíticas: (1) “O ecumenismo de base tem uma dimensão política porque seu fundamento teológico é a teologia da libertação”;[32] (2) “O fundamento para a unidade da humanidade que se visa reside na luta comum por transformações políticas e sociais de caráter estrutural.”[33] Nas palavras de Santa Ana, é o desejo de que, na perspectiva do Reino, “irrompa uma sociedade nova”,[34] pois em última instância, “Trata-se de uma tentativa de unidade que se encarna na história”.[35]
Além do que já foi dito a respeito da teologia da libertação, note-se que a concepção de unidade à qual está se aludindo aqui ultrapassa evidentemente os limites do objetivo pela unidade dos cristãos, ao falar em transformações políticas e sociais de caráter estrutural. Até porque a materialização das ações dentro deste paradigma ecumênico se dá através de espaços e ações para além dos âmbitos eclesiásticos e institucionais. Alguém poderia dizer que transformações políticas e sociais fazem parte, sim, do ideal ecumênico da unidade dos cristãos. Mas é preciso dizer, por um lado, que, na prática, isto é difícil de ser constatado; e, por outro lado, que nesta iniciativa do ecumenismo de base, de fato, não se visa uma unidade confessional, institucional entre as igrejas como condição para testemunhar a fé ao mundo. Inclusive, nesta perspectiva, a evangelização, na compreensão “evangélica” do termo, não aparece em lugar nenhum. No mínimo, ela está resignificada através da compreensão de evangelização como as ações e os efeitos das transformações sociais e políticas produto da união dos cristãos ao redor destas causas.
3.Avaliação.
Parece que quanto mais ampla e abrangente a concepção do ecumenismo, o ideal da “unidade entre os cristãos” vai se tornando mais fraco, vai passando a um segundo plano, ou inclusive, vai se transformando num obstáculo para o sentido mais amplo do ecumenismo. Se consideramos o texto do evangelho de João, capítulo 17, como um enquadramento bíblico do ecumenismo, encontramos algumas raízes dos paradoxos e ambiguidades inerentes ao problema. Jesus ora pela unidade dos seus discípulos “a fim de que todos sejam um; […] para que o mundo creia que tu me enviaste”. Temos no cerne de um dos versículos sobre os que se afunda o desejo ecumênico, uma frase potencialmente problemática: o desejo de unidade, colocado a partir da afirmação de uma realidade de divisão: “nós”, e “o mundo”. Toda a passagem de João 17 está cheia desta diferenciação entre “os que são de Jesus” e “o mundo”. A pergunta é: até que ponto pode grupo algum, hoje, se situar no grupo dos discípulos de Jesus, o “nós”, separando-se assim do mundo, “eles”, numa condição diferenciada, e pretender ser comissionados pelo próprio Deus para apresentar a sua mensagem, aquela na qual há de crer o mundo inteiro? Qual seria a argumentação para dizer que há uma ligação direta entre as pessoas pelas quais Jesus intercede e algum nós?
A busca pela unidade, fundamentada neste versículo, evidencia um propósito inerentemente proselitista, o que está ao mesmo tempo latente e patente: “para que o mundo creia…” O cristo-centrismo decorrente dessa visão é evidente em muitas das interpretações que as igrejas evangélicas fazem desta passagem. É interessante, porém, a fraqueza com que o evangelho de João aborda o tema do Reino de Deus.[36] Mais interessante ainda é contrastar isto com o fato que o Reinado de Deus é, indiscutivelmente, o centro da pregação de Jesus, e o eixo da sua atividade; “Por isso, o ponto de acesso à autoridade da missão de Jesus deve ser procurado principalmente neste eixo. O Reinado de Deus é o definitivo, o permanente, a salvação definitiva que Deus quer obrar e que começa já a obrar, a ordem nova e válida que tem de estabelecer-se e que se opõe às leis do mundo.”[37]
Tudo isto indica tão somente que as palavras de Jesus no evangelho de João, o evangelho de maior elaboração teológica, de maior conteúdo simbólico, devem ser interpretadas à luz desta descoberta dos estudiosos sobre Jesus e a sua mensagem. Alguém refutara: Mas, há vários textos na Bíblia (p. ex. 79. Lc. 11:20, 12.8-9, Mc. 9.37, e Mt. 10.14) onde verificamos “que Jesus vincula a recepção do Reino à aceitação de sua pessoa. Quem se converte ao reino de Deus converte-se a Jesus”[38] Com certeza, “a centralidade de Jesus Cristo é característica fundamental da fé do Novo Testamento. Jesus Cristo é centro e objeto da fé”;[39] no entanto, dizer que Jesus é centro e objeto da fé, e não explicitar o que aquilo significa, é colocar uma armadilha, perigosa demais, para a compreensão dessa fé. Jesus deve ser colocado em segundo plano, assim como ele mesmo se considera em serviço de uma causa maior que a sua pessoa.
É basicamente esta compreensão sobre o Reino que faz com que a proposta ecumênica amplie os seus horizontes e vá além dos limites eclesiásticos. Aliás, o Reino vai além dos limites eclesiásticos. É por isso que as propostas ecumênicas como as de APD e CMI e o “Ecumenismo de Base”, ficam eventualmente fora da realidade eclesial. Assim como o Reino é maior do que a Igreja, o ecumenismo como unidade da humanidade, é maior do que o ecumenismo como unidade entre os cristãos. Se falarmos estritamente em ecumenismo teríamos de dizer que o termo deveria significar, por cima de qualquer outra definição, “a união de todos os seres humanos de boa vontade”. O ecumenismo, tal como é praticado desde as origens do movimento ecumênico moderno, obviamente, de origem cristã, não é mais do que um triste e vão reflexo do grande ideal ao qual o termo aponta.
D. O Futuro do Ecumenismo em Diálogo com José Míguez Bonino
Queremos destacar três elementos do pensamento de Míguez Bonino para pensar os desafios que representa o ecumenismo em sentido amplo para a fé cristã. (i) Um aspecto formal que conjuga o horizonte ecumênico de diálogo com uma análise contextual que assume responsavelmente a história e as suas vicissitudes; (ii) uma visão da identidade como algo no horizonte do desejo e concebida em meio a interesses e forças históricas múltiplas; e (iii) um pressuposto de que a teologia deve partir de uma paixão subjetiva cujo horizonte é a transformação das realidades de opressão e injustiça que nos rodeiam. Considero alguns trechos do seu livro Rostos do Protestantismo Latinoamericano.[40]
O livro é um claro exemplo do tipo de trabalho interdisciplinar que, penso eu, nos desafia para assumir a teologia no século XXI. Como ele mesmo afirma no prefácio, “ele se move entre a história da igreja, a história da teologia, a teologia sistemática e a interpretação social”. Por que é importante a conjugação desses elementos para se pensar a teologia, e particularmente, o ecumenismo? Em primeiro lugar, porque só o trabalho histórico seriamente fundamentado nos permite compreender o nosso presente histórico, e o lugar que ocupamos nele. Em segundo lugar, porque igreja cristã não possui uma história diferente ou paralela à história humana. Ela está indissoluvelmente imbricada nas trajetórias mundanas do nosso existir histórico. E em terceiro lugar, porque uma teologia que não fala à história humana e mundana, que não se deixa interpelar pela realidade social, e pelos conflitos dos quais ela própria faz parte, está fadada a ser uma teologia irrelevante. Curiosamente, essa irrelevância o é só em termos de transformações sociais, porque em outro sentido, teologias “irrelevantes” são, de fato, muito significativas para a manutenção do status quo. Escutemos, então, ao próprio Míguez Bonino. Começo por destacar sua visão do subjetiva em seu trabalho:
O tema que defini (…) é de meu interesse. Para ser mais exato, é quase uma obsessão. (…) Até começar a embaraçar-me no caminho, na busca dos fios do tema, na necessidade de envolver-me com temas e histórias que não conhecia, não me perguntei que espírito maléfico me haveria tentado. Não sou dado à introspecção – talvez, por temor do que pudesse vir a encontrar –, mas cheguei à conclusão de que duas interrogações são provavelmente as responsáveis pela escolha do tema. E ambas são vergonhosamente subjetivas. (p.5) … Ao reler o texto comprovo que às vezes o tom passa da argumentação e da análise para a retórica e a exortação. Não me desculpo por isso. De que valem argumentos e análises se não procuram convencer, se não estão a serviço de uma paixão?[41]
O leitor percebe que, longe da pretendida “objetividade científica” comum à retórica de uma boa parte dos cientistas nas ciências humanas (e muito mais nos das ciências exatas), Míguez Bonino declara o seu tema (se debatendo em parte entre a vergonha e a convicção) como uma obsessão, marcado pelas suas interrogantes subjetivas, colocando os seus argumentos a serviço de uma paixão! Sua paixão está marcada por cenários políticos de desigualdade, injustiça, violência e opressão. O que é que nos move hoje como teólogos e teólogas de nosso tempo? Estaremos dispostos a declarar a maneira como os nossos contextos e as nossas vivências particulares determinam os nossos interrogantes e as nossas lutas políticas?
Tais cenários políticos que condicionam a sua subjetividade o levam a analisar o contexto maior da reflexão teológica: a história mundial. A sua paixão ecumênica está marcada pela consideração da interpretação da história dos povos, das sociedades, do acontecer político, econômico e social. O que tem a ver a história do capitalismo com a história das missões cristãs do século XVIII e XIX? O que tem a ver a Reforma Protestante do século XVI com a fé de cristãos liberais, evangélicos e pentecostais do século XX? Observemos as seguintes palavras suas:
Na América Latina “protestante” e “evangélico” (…) têm sido sinônimos. Há cerca de 40 anos, Adam F. Sosa questionava essa identificação e sustentava que nossas igrejas eram, na verdade, “evangélicas” e não, protestantes. Minha reação a essa tese foi negativa e procurei demonstrar a firme raiz protestante – “herdeiros da Reforma de Lutero e Calvino” – das igrejas evangélicas latino-americanas. Ainda hoje sustento isso, porém, é preciso admitir que, no caso da maioria das nossas igrejas, a herança tem sido “re-monetarizada” em outra terras e com outros moldes e que a ignorância desses processos de mediação foi um grave obstáculo para que os evangélicos nos entendêssemos a nós mesmos como protestantes. Este livro é, em parte, uma tentativa de refletir sobre essa “transferência”.[42]
Levada ao extremo, a posição de Adam F. Sosa é representativa de um certo separatismo a-histórico que considera a emergência dos grupos sociais e das identidades coletivas como se estes fenômenos pudessem surgir do nada, completamente desligados dos processos históricos dos quais emergiram. Tal visão “mágica” pode ser constatada na crença de uma grande maioria de cristãos contemporâneos, de todas as vertentes e denominações, que, hilariamente, consideram-se diretos herdeiros do “cristianismo primitivo”. A posição de Míguez Bonino procura corrigir este a-historicismo através, não da mistura e com/fusão das identidades, mas da investigação das suas raízes, e do reconhecimento dos elementos comuns, das suas relações e interações nos processos históricos. Este tipo de raciocínio tem consequências cruciais para a compreensão da “identidade”, uma categoria que remete a uma das problemáticas centrais na cultura contemporânea, de forma geral, e no ecumenismo, de forma particular. Escutemos mais uma vez a JMB, quando ele fala da sua identidade evangélica:
Nesse solo parecem haver-se afundado, ao largo de mais de 70 anos, as raízes de minha vida religiosa e de minha militância eclesiástica. Dessa fonte parecem haver brotado as alegrias e os conflitos, as satisfações e as frustrações que se foram tecendo ao longo do tempo. (…) Se verdadeiramente sou evangélico ou não, tampouco compete a mim dizê-lo. Nem me preocupa que outros o afirmem ou neguem. O que sou de verdade compete à graça de Deus. Mas pelo menos isso é o que eu sempre quis ser.[43]
O que Míguez Bonino está nos dizendo é que a identidade é menos importante do que aquilo que os nossos desejos nos levam a fazer, e a maneira como tais desejos se materializam em ações concretas de luta, de engajamento, da forma como decidimos viver a nossa experiência de fé. A identidade, em lugar de uma essência fixa que pudéssemos tocar com exatidão (ou à qual pudéssemos agarrar-nos quando interagimos com “outros”) é, na verdade, um horizonte, desenhado pelos nossos desejos e vontades, e materializado pelas nossas ações e atitudes em face desses “outros”. História, subjetividade e identidade: três termos ao redor dos quais podemos refletir sobre o pensamento de Míguez Bonino, e que contém insights que considero importantíssimos para a problemática do ecumenismo, analisada na primeira parte desse trabalho.
Foi apontado que as iniciativas ecumênicas (CMI, macroecumenismo, de base), quando desenvolvem os seus objetivos, terminam em paradoxos incontornáveis. Tais paradoxos têm muito a ver com a forma como as ações ecumênicas, quando se alinham com um sentido amplo do termo, acabam esbarrando na questão da identidade cristã; algumas vezes a fazendo irreconhecível, outras vezes não a levando “a sério”, e outras, a assumindo como o obstáculo central para a unidade da humanidade. Pesquisas recentes no campo dos discursos críticos sobre teologia e religião caminham na direção marcada pelo pensamento de Míguez Bonino e podem representar uma boa forma de lidar com os paradoxos instaurados pelo projeto ecumênico: a unidade de todas as pessoas de boa vontade. Tais discursos críticos, como o discurso pós-colonial, e certas teologias feministas, confrontam estas noções essencialistas sobre a identidade, e nos desafiam, consequentemente, para ir além dos nossos limites identitários.
O trabalho de reconstrução histórica que “revela as origens comuns dos diferentes movimentos e grupos religiosos, como no livro Rostos do Protestantismo Latinoamericano, nos convida a compreender a questão da nossa identidade em apertura ao outro, na compreensão de que o que nos diferencia não é uma essência, mas a maneira como a história nos constituiu em relação aos nossos contextos geopolíticos, e a maneira como os nossos desejos interagiram com esses contextos, produzindo ações concretas, em momentos concretos. Observe-se o que Mark Lewis Taylor comenta a respeito do “movimento de Jesus”:
… frequentemente retratado como uma comunidade social completamente cristã, foi, com toda probabilidade, um movimento muito mais permeado com outras formas culturais e religiosas –não somente aquelas que eram judias- que o que tem sido mostrado. R. S. Sugirtharajah tem sido particularmente insistente em lembrar aos cristãos que os próprios ensinamentos de Jesus, e o movimento catalisador ao redor de tais ensinamentos, esteve mediado também por formas culturais asiáticas, em particular da Índia. O lugar sociocultural da historicidade do movimento de Jesus foi um “cristianismo” emergente, que era judeu, hindu, e budista, incluindo elementos persas, gregos e romanos, assim como também dimensões centrais das tradições rurais dos indígenas da Palestina.[44]
Da mesma forma, elementos do universo cultural-religioso dos indígenas ameríndios e africanos perpassam, em maior ou menor grau, a configuração da religiosidade cristã no nosso continente latinoamericano, e fazem parte integrante das nossas doutrinas, das nossas formas litúrgicas, dos nossos símbolos, e das nossas experiências religiosas de modo geral. Rejeitar tais elementos sobre a base de uma diferenciação identitária e da ideia da conservação de uma “pureza” (em qualquer sentido), é perder de vista o horizonte maior da nossa caminhada humana mais radical: a busca por um mundo reconciliado, no horizonte do “reino de Deus”, que é justiça, paz e gozo, em termos cristãos; ou a busca por uma convivência em equilíbrio e respeito pela natureza e por todas as suas criaturas, como poderia ser enunciado desde outras religiosidades e culturas.
Penso que o trabalho de Míguez Bonino nos desafia em vários sentidos para a tarefa teológica hoje. Eu quis destacar o seu rigor com o trabalho histórico, a sua paixão pelo horizonte do diálogo e do ecumenismo, e a sua compreensão da identidade como o espaço da materialização dos nossos desejos e paixões. Se a teologia deve estar (e está sempre, explícita ou implicitamente) a serviço de uma paixão, creio que podemos começar por perguntar a nós mesmos e aos nossos colegas teólogas e teólogos, sobre as nossas paixões. O que é que nos obceca? Quais são as nossas paixões mais profundas? Como tais paixões intervêm no nosso trabalho teológico? Afinal, a pergunta não deverá ser “quem nós somos?”, uma pergunta que necessariamente divide, em lugar de unir, criando um “nós” e um “eles”. A pergunta é “o que faremos com o tempo/espaço que nos é dado?”. Parece claro que aquilo que faremos estará determinado pelas nossas paixões, desejos e obsessões. Portanto, é importante começar revisando isso. Em última instância, a questão da identidade, como disse Míguez Bonino, não corresponde a nós: “o que somos de verdade compete à graça de Deus”. Importa, sim, saber “o que queremos ser”. Pois o que quer que façamos, as nossas lutas, os nossos atos e atitudes, acabarão definindo o nosso “ser.”