Resenha
Mestiço/as com um rosto Àsiatico
Hanna Kang
Tradução por João Chaves
A. Introdução
1847, 1899, e 1925: estes são os anos em que os primeiros imigrantes do leste continental asiático–China, Coreia, e Japão–chegaram nos países Latino Americanos de Peru, Brasil, e Cuba.[1] Embora ainda seja difícil associar Latinos/as com um rosto Asiático, os Asiáticos estão no continente Sul Americano desde do século 19, com seus descendentes agora indo para a terceira e quarta gerações. Muitos tem se estabelecido permanentemente, ao passo que outros tem partido para novos destinos nos Estados Unidos da America, seus países de origem na Ásia, ou outras tantas partes do mundo, por várias razões ou motivos.
Meu estudo se concentra nas identidades dos chamados “Latino/as Asiáticos” por meio da lente analítica da mestiçagem[2] a fim de criar um espaço onde suas vozes possam ser ouvidas, já que tem sido silenciadas por muito tempo nas narrativas de mestiçagem. Ao fazer isso, a categoria universal de mestiçagem que alude a junção harmoniosa de duas ou mais culturas e que promove a inclusão de raças, ao rejeitar radicalmente o racismo e etnocentrismo, é desmistificada. Portanto, meu argumento defende uma categoria conceitual de mestiçagem que é intencionalmente complicada, fluída, e aberta. Este conceito de mestiçagem contesta e questiona a imagem estereotipada de mestiço/as que ainda depende excessivamente de percepções visuais e ancestralidade biológica. Ao mesmo tempo, constantemente pergunta quem está sendo excluido/a da realidade complexa e multifacetada do termo.
Certamente, mestiçagem é um dos conceitos mais basilares para descrever a dinâmica diversidade racial e realidades multiculturais que estão aflorando na America Latina. Também é uma ferramenta analítica excepcional para explorar as realidades de várias comunidades de imigrantes Latino/as nos Estados Unidos e como marco identitário com o qual muitos Latinos possam se associar. Embora seria um grande erro usar a mestiçagem como etiqueta única e universal que represente a America Latina e seus povos, assim como inúmeras comunidades Latino/as nos Estados Unidos, mestiçagem ainda é um dos terrenos menos explorados e mais contestados em estudos Latino Americanos.
Primeiramente, começo explorando o significado e limites do termo mestiçagem. Visto que o termo tem sido amplamente empregado por vários eruditos tanto nos Estados Unidos quanto que no restante do continente Americano, eu principalmente dependo de definições da teologia Latino/a assim como das ciências sociais e antropológicas. Depois analiso se o termo ou o ponto em comum compartilhado por diferentes opiniões a respeito de mestiçagem se aplica a realidade dos Latino/as Asiáticos. Finalmente, exploro algumas das implicações desta inclusão de discursos e debates a respeito da mestiçagem na realidade dos Latino/as Asiáticos.
Antes de mais nada, algumas qualificações precisam ser feitas. Visto que mestiçagem é um conceito contestado, nenhuma tentativa será feita para chegar a uma definição universal que possa captar todos os usos diferentes do termo. Tal processo não é apenas impossível mas como também corre o risco de criar uma barreira conceitual que em última instância possa excluir aqueles que “não alcancem” uma definição fixa. Além do mais, como a mestiçagem é um conceito que depende de contexto tanto o Norte Americano quanto que o Latino Americano, é necessário um esforço intencional para não impor uma única perspectiva nas diversas realidades que tal termo sugere. Finalmente é importante notar que a identidade mestiça de Asiáticos Latino/as não é invenção recente, nem é uma tentativa de acrescentar outra raça ao conceito de mestiçagem. Pelo contrario, é uma redescoberta da presença de povos que tem vivido na America Latina por mais tempo do que a maioria das pessoas pensam, mas que permanecem geralmente ausentes dos debates de mestiçagem assim como pouco representados e mal retratados in conversas sobre identidades Latino/a
B. “Latino/as” Asiáticas
É importante clarificar primeiramente o uso do termo Latino/as. Como Néstor Medina propiciamente notou, Latino/as Norte Americanos não se refere à Latino Americanos ou imigrantes da America Latina nos Estados Unidos, embora estes façam parte da população Latino Americana. Pelo contrário, a maioria dos Latino/as são cidadãos dos Estados Unidos cujas raizes ancestrais e regionais precedem a independência das Estados Unidos da America.[3] Em outras palavras, embora o termo “Hispano” ou “Latino/as” sejam empregadas como marco identitário artificial pan-étnico imposto pela cultura dominante para designar de forma ampla indivíduos e comunidades que estão relacionadas com a America Latina e Espanha, Latino/as são comunidades Norte Americanas que possuem várias origens étnico-raciais, culturais, e de origens ancestrais nacionais, mas que viveram nos Estados Unidos por gerações. Nesta perspectiva, Daisy Machado aponta que os Estados Unidos é o único país onde a palavra “Hispano” é utilizada. Além do mais, pessoas que pertencem à esta categoria sintética involuntariamente carregam estereótipos negativos que surgem com este termo.[4]
Talvez, nenhum termo seja unicamente adequado para falar a respeito da diversidade de comunidades Latino/a. Tendo em mente a desigualdade de poder existente por detrás deste termo amplo e sua incapacidade de reflexão com relação a variedade de comunidades Latino/as Norte Americanas, eu utilizo “Asiáticos Latino/as” para enfatizar intencionalmente a conexão fixa de Asiáticos com a America Latina, assim como também salientar um ponto em comum destes com outros Latino/as acerca de suas identidades mestiço/as caso seja na America Latina, Estados Unidos ou outros lugares. No entanto, consta-se que é preciso ter muito cuidado não mesclar suas particularidades juntas, nem generalizar as experiências de Latino/as Asiáticos. Por exemplo, a bagagem cultural que Brasileiros Japoneses carregam pode ser significativamente diferente da experiência vivida por Argentinos Coreanos. Quando empregada cuidadosamente, uma categoria ampla como Asiáticos Latino/as é útil para salientar as experiências compartilhadas da mistura de imigrantes do Leste Asiático e seus descendentes.
C. Definição Clássica de Mestiçagem
1. Virgilio Elizondo, Marginalização em dobro e o surgimento de um Novo Povo
A maioria dos eruditos e teólogos Latino/a reconhecem Virgilio Elizondo como pioneiro que conduziu a reflexão teológica inicial sobre mestiçagem. Motivados pela teologia da libertação, especialmente aquela de Gustavo Gutiérrez, Elizondo buscou entender as realidades sócio-culturais da presença Mexicana-Americana, suas expressões religiosas, e sua identidade e dignidade, na cultura dominante dos Estados Unidos, utilizando a mestiçagem como ferramenta analítica.[5] Aqui, apresento sumariamente dois de seus argumentos principais sobre mestiçagem– a marginalização dupla e o surgimento de uma nova raça–a fim de avaliar sua contribuição e suas limitações em relação ao contexto dos Asiáticos Latinos/as.
Em sua obra influente, The Galilean Journey, Elizondo discorre sobre as duas fases de mesticagem, que envolvem grande sofrimento e violência, mas também possuem o potencial positivo de transcendência. Elizondo aponta que ao passo que a miscigenação como fenômeno biológico de mistura seja um processo cultural normal na evolução da humanidade, no entanto, no contexto das Américas, a miscigenação ocorreu através de conquistas militares, colonização, e imposição religiosa seguida por abusos terríveis e repressões. Esta primeira experiência de mestiçagem foi seguida pela conquista Anglo e invasão do México.[6] A primeira mestiçagem ocorreu como resultado da conquista Espanico-Catolica do México e às custas da desumanização horrorosa dos povos que habitavam as Américas e a escravidão e transplantação de negros Africanos. Um novo povo surgiu durante a conquista Espanico-Catolica das Américas, com todas suas chagas e cicatrizes.
A segunda mestiçagem foi uma que ainda está ocorrendo nos Estados Unidos da America. Mestiços/as Mexicanos Americanos nasceram da invasão Anglo-Saxônica do norte do México que culminou com o tratado Guadalupe-Hidalgo de 1848. Depois destes eventos históricos, um novo povo–a população México-Americana – começou a surgir. Eles foram alvos de violência pública e privada e de discriminação inclusive sendo taxados pela perspectiva dominante Anglo-Saxônica como inferiores, preguiçosos e enganadores.[7] Em seu livro, The Future is Mestizo, Elizondo enfatiza o sofrimento de populações de origem misturada no decorrer do processo de conquista. Ele diz que na primeira conquista, os Espanhóis tentaram suprimir tudo que fosse de origem nativa. Na segunda conquista, os Anglo-Saxões tentaram suprimir tudo que fosse Mexicano. Ele escreve “nos fomos duas vezes conquistados, duas vezes vitimizados, e duas vezes misturados” para descrever mestiços como pessoas que surgiram desta marginalização dupla.[8]
No entanto, a experiência de marginalização dupla não foi o fim da história. Elizondo diz que ser mestiço tem um lado doloroso, mas há também um lado proveitoso: pode se mover por dois mundos diferentes.[9] Percebe-se aqui que ele enxerga o potencial de mestiço/as como povo novo. A tensão entre ser alguém de dentro e alguém de fora gera um povo com potencial para transcender cosmovisões estabelecidas a fim de criar um mundo próprio. O mestiço/a não se encaixa em categorias analíticas usadas por qualquer um dos grupos dos quais é misturado/a. No entanto, como indivíduos que estão tanto dentro quanto fora, eles possuem uma proximidade e distância de ambas as culturas. Eles podem ver e apreciar características de ambas as culturas que eles não vêem em si nem nos outros.[10]
Umas das contribuições principais de Elizondo é sua descrição das realidades de descriminação e marginalização de mestiço/as nos EUA, ao passo que reconhece a internalização dolorosa de opressão por parte dos oprimidos. Ele também usa o termo mestiços/as para enfatizar seus potenciais para englobar características de ambas as culturas e raças apesar da rejeição e de buscar justiça para os marginalizados por meio da imaginação teológica. Sua representação incisiva de Jesus como mestiço/a que se identificava com os marginalizados e a reinterpretação da obra redentora de Jesus no evangelho com princípios da Galiléia, Jerusalem e ressureição, funcionam como base teológica para reconquistar a dignidade dos desonrados. Os marginalizados são libertos não se tornando mais como seus opressores mas abraçando sua identidade distinta mestiça de duas culturas e começando uma “nova unidade,” não apenas para si mas para os outros também.[11]
Elizondo propicia uma base para aqueles que dão a miscigenação uma interpretação teológica. A transição de mestiços/as da marginalização para a libertação cria espaço para a apreciação de sua identidade, algo que não está limitado somente para Mexicano Americanos mas também se aplica a outros grupos minoritários que compartilham uma experiência semelhante de marginalização por ser mestiços/as em outros contextos. Além do mais, ao afirmar de maneira teológica a identidade mestiço/a, Elizondo enfatiza a missão divina inserida na mestiçagem e seu potencial para transcender ambas as culturas.
No entanto, há limites para a contribuição de Elizondo. Ao focar-se apenas no local social de Mexicanos Americanos, esta identificação tem se tornado a imagem mais distintiva e padrão para todos mestiços/as. Tal abordagem ignora as realidades multirraciais da mestiçagem como as diferentes nuanças que tal conceito recebe em outros contextos. Por exemplo, a forte ênfase na mistura Europeia e Ameríndia corre o risco de diminuir a identidade de povos mestiço/as que não possuem mistura de qualquer um dos grupos, aqui no caso, Latino/as Asiáticos. Então, embora Elizondo enfatize o aspecto inclusivo da mestiçagem, que transcende duas culturas maternas, sua ênfase no aspecto inclusivo da miscigenação de povos Mexicanos Americanos produz um efeito não intencionado para outros mestiço/as também.
2. Isasi-Díaz: Mestiçagem-Mulatez como escolha Moral
Ada Maria Isasi-Díaz se apropria do conceito de Elizondo de mestiçagem e a amplifica para as realidades de outras comunidades Latino/as. Conforme o termo mestiçagem-mulatez sugere, ela inclui a mistura de povos Europeus e Africanos no Caribe. Sua definição de mestiços/as se refere a mistura de sangue Ameríndio, Africano e Europeu e extende os limites do termo ao incluir “a presente mistura de povos da America Latina e do Caribe tanto entre nós quanto entre povos de outras origens étnicas/culturais aqui nos EUA.”[12] Embora Isasi-Díaz concorde com a compreensão de Elizondo de mestiçagem como um novo povo, ela vai além e a conceitua como decisão moral. Mestiçagem-mulatez não constitui apenas um locus theologicus surgindo da experiência diária de mulheres Latinas a partir do qual ela desenvolve sua reflexão teológica. Ao seu ver, este conceito também possui uma opção ética, uma escolha que deve ser feita repetidamente e uma maneira de se relacionar com os outros. Ela assegura que mestiçagem-mulatez é importante por três motivos. Primeiro, proclama a realidade vivida baseada na mistura de culturas Ameríndias, Africanas e Espanhóis que se uniram formando novas culturas. Em segundo lugar, ela revindica as misturas culturais e a diversidade que a cultura dominante tenta diminuir. E em terceiro lugar, mestiçagem-mulatez oferece um novo paradigma de pluralismo e um novo modelo para valorizar a diferença.[13]
Consta-se que é na realidade marginalizada de mestiçagem-mulatez que Isasi-Diaz encontra uma maneira alternativa de compreender a diferença. Embora a cultura dominante defina diferença em termos de oposição e exclusão, ela propõe uma compreensão de diferença que seja relacional que se refira à especificidade ao invés da oposição. Ela ressalta que é a nova compreensão da diferença que surge da diversidade da realidade de mestiçagem-mulatez que transcende compreensões de diferença preconceituosas e promove diálogo com comunidades marginalizadas nos EUA.[14]
Além da contribuição de Isasi-Diaz de uma interpretação de gênero de mestiçagem-mulatez por meio da teologia mujerista, sua compreensão geral do conceito é mais inclusivo do que a de Elizondo, ao passo que se refere a criação de uma nova cultura que abarca elementos da cultura Africana, Ameríndia e espanhola.[15] De fato, a forma como Isasi-Díaz conceitua o termo comumente se torna alvo de críticas por permitir a assimetria de poder e deixar a hierarquia racial da população não contestado. Como Miguel de la Torre menciona, tal visão reducionista de mulatez cria a falsa impressão de igualdade racial entre a identidade negra e branca dos Latinos/as.[16] No entanto, o fato de que Isasi-Diaz reconhece a herança Africana de identidade Latino/a e a incorpora em seu discurso teológico é particularmente notável. A virada para a contribuição Africana na formação da mestiçagem transcende o conceito binário tradicional dos habitantes nativos e colonizadores europeus abrindo espaço para outras raças e comunidades, especialmente aquelas que chegaram no continente como parte da diáspora, e como consequência da colonização Europeia pelo mundo afora. Ela faz isso sem diminuir sua opressão ou romantizar sua integração no processo formativo de mestiçagem.
Além do mais, ao recusar a compreensão hegemônica de diferença como antagônica, ela demonstra que a prática da cultura dominante em menosprezar tudo Latino/a como diferente demais para ser considerada Americana, uma prática que em última instância força Latino/as a se diminuirem. Portanto, Isasis-Díaz interpreta mestiçagem-mulatez como uma escolha moral por justiça, apoiada numa definição alternativa da diferença. No entanto, sua crítica da diferença como antagônica (cultura Dominante Latino/a) parece ignorar o fato de que tal violência ocorre dentro de comunidades Latino/as também. Este é o caso com Latino/as Asiáticos, que, apesar de estarem presentes por mais de um século, são considerados imigrantes perpétuos ou na melhor das hipóteses descendentes de imigrantes. Inclusive, sua latinidade é na maioria das vezes obscurecida porque suas culturas étnicas e traços físicos são considerados muito diferentes para ser autenticamente Latinos/as.[17] De fato, embora a inclusão de mulatez expande o conceito de mestiçagem e abra espaço para outras raças e grupos étnicos representar suas realidades Latino/a, ele exclui o sistema de exclusão e hierarquia étnico-racial dentro de Latino/as que em última instância exclui algumas comunidades étnico raciais da realidade Latino/a.
Desde a examinação de Elizondo a respeito da identidade de miscigenação através do prisma teológico do Jesus mestiço e a mestiçagem-mulatez de Isasi-Díaz como escolha moral, outros eruditos–tais como Fernando Segovia, que vislumbrou uma teologia de mistura e do outro mais inclusiva (mistura e alteridade)[18] e Daniel Orlando Álvarez que introduziu o conceito de hibridez no discurso de miscigenação a fim de enfatizar os espaços intersticiais na formação da identidade de Latino/as e explorar as tensões intra-Latino/as e suas relações com outras comunidades[19]–– expandiram e contextualizaram o significado de mestiçagem de múltiplas ângulos.
D. Mestiçagem, uma Area Contestada
No entanto, muitos eruditos polemizaram o uso exagerado do conceito de mestiçagem. Em seu livro seminal, Mestizaje: (Re)Mapping Race, Culture, and Faith in Latino Catholicism, Néstor Medina criticou duramente a expressão geralmente romantizada e glorificada de mestiçagem como uma ideologia fixa de mistura entre Latino/as. Ele problematiza a concepção idealizada de mestiçagem adotada por muitos teólogos Latino/as, que a conceituam como processo singular e único que afirma a inclusão e diversidade cultural rejeitando tendências homogêneas e racistas. Medina assevera que uma adoção e aplicação superficial de miscigenação é problemática por vários motivos. Por exemplo, ela ignora o fato de que a história da violência e discriminação na qual mestiços/as nasceram não foi algo somente do passado. Pelo contrário, é uma situação contínua no contexto Latino Americano onde o conceito hegemônico de mestiçagem esconde a violência perpetuada contra povos indígenas e Africanos e imigrantes.[20]
A glorificação do conceito de mestiçagem também corre o risco de alienar ainda mais grupos minoritários. A compreensão essêncialista de raça dentro do conceito de mestiçagem em conjunto com uma mentalidade fechada que se desenvolve em comunidades minoritárias, pode criar sociedades mestiços/as radicalmente isoladas. Assim, como Rubem Rosario Rodíguez afirma corretamente, mestiçagem serve como um símbolo religioso nacionalista que arrisca isolar ainda mais populações minoritárias marginalizadas.[21] O mais importante, porém, é que a elisão das tensões internas dentro das diversas populações Latino/a dos EUA e os debates mais amplos na America Latina transformam a noção de mestiçagem em categoria monolítica obscurecendo o racismo e as hierarquias raciais dentro dos mestiços/as em si. Consequentemente, isso nega a existência de grupos culturais diferentes dentro de populações Latino/a tanto nos EUA quanto que na America Latina.[22]
Ao se tratar das narrativas de Latino/as Asiáticos, o ponto que Medina salienta com respeito da adoção e do uso indiscriminado deste termo é de importância vital. De fato, sem uma abordagem crítica com os contextos sócio-históricos onde a mestiçagem emerge e um uso mais aprofundado do termo–– um que está ciente das brechas das realidades mestiças entre comunidades e países–– mestiçagem se torna um conceito artificial e hegemônico que amontoa as múltiplas contestadas realidades dos EUA e America Latina em um processo único de suposta mistura harmoniosa e inclusiva. Tal compreensão de mestiçagem esconde a pratica exclusivista que privilegie um tipo especifico de mestiços/as construindo imagens estereotipadas (a mistura indígena-espana), enquanto que exclui aqueles que não se encaixam nesta categoria. Também omite tensões internas e desigualdades de gênero dentro dos Latino/as nos EUA e o problema da supremacia mestiço/a na America Latina que oprime aqueles que não fazem parte da maioria mestiço/a.
Mestiçagem no contexto dos EUA não é sinônimo de mestiçagem na America Latina. No entanto, em ambos os casos, precisa-se abordar o termo como um conceito essencialmente “sujo” que nunca deveria ser exaltado de maneira exagerada. Pelo contrário, deve-se examina-la como denotando uma identidade fluída e uma realidade múltipla da mistura que nem sempre envolve a junção harmoniosa de duas ou mais culturas. Como Medina nota: “mestiçagem não é somente uma única coisa, ou uma experiência da mistura compartilhada por todos os povos. Mestiçagem deve ser vista no sentido plural e qualificada á luz dos contextos históricos do qual ela emerge.[23]
Um exemplo de um conceito contextualizado de mestiçagem vem de Manuel Vasquez, que examina mestiçagem de uma perspectiva da America Central. Rejeitando um discurso unificador de mestiçagem ao redor de populações Latino/a, ele apela para um uso mais preciso do termo para demonstrar o “contraste de luzes e sombras que acompanham esta noção.”[24] Ele enfatiza que a ideologia de mestiçagem em El Salvador muitas vezes ignora o massacre de 1932 de mais de dez mil camponeses Salvadorenhos, muitos de ascendência indígena, e as divisões sócio-econômicas e raciais no país. A ideologia mesclada de mestiçagem como símbolo nacionalista com democracia liberal legitimou esta destruição de populações indígenas. Em outras palavras, o conceito serviu aos interesses dos poderosos se associando à híbridos e elites Euro-Americanas de complexidade escura até clara em sua oposição aos estrangeiros e outros indígenas que eles retratavam como primitivos e inferiores.[25]
Tal dicotomía racializada criada por essas elites legitimou a opressão e exclusão de pobres e povos indígenas na America Latina. Em El Salvador e talvez em outros lugares mestiçagem também tem sido um ideal político utilizado pelas elites para sistematicamente alienar aqueles que não são mestiços/as debaixo de uma falsa bandeira de igualdade racial e inclusão.[26]
Por este motivo, o reconhecimento destes fatos e até mesmo os retratos contraditórios de mestiçagem ao redor do continente devem ser tratados em primeira instância ao lidar com qualquer narrativa específica de mestiçagem. Uma realidade diversa e plural contesta os privilégios epistêmicos que uma interpretação específica de mestiçagem tem exercida sobre os outros. Além disso, considerar os aspectos múltiplos de mestiçagem propícia uma palanca para outras narrativas de mestiçagem, que até agora foram excluídas, serem ouvidas.
Neste contexto, o uso de mestiçagem na Argentina, que propicia um retrato diferente daquele de El Salvador, permite espaço para uma avaliação crítica e uma interpretação contextualizada do conceito. Mestiçagem na Argentina possui fortes laços com o “embranquecimento” da raça. Lea Geler, uma antropóloga Argentina e historiadora ressalta que as categorias raciais binomiais na Argentina, que ainda estão em favor da branquitude, não permitem que a mestiçagem surge nesta sociedade. Branquitude na Argentina hoje não é necessariamente limitada a características fenotípicas, mas é um estilo de vida que está em oposição a qualquer coisa que seja indigna e não-criollo/a. Isto é, uma pessoa branca é criollo/a, quando assume uma certa classe social e status econômico que o/a separa dos racialmente e sócio-economicamente periféricos provincianos/as, estrangeiros/as, e indígenas.[27]
Baseado em três estudos de caso de mulheres de ascendência Africana que foram socialmente e racialmente identificadas como “brancas,” Geler afirma que em um país como a Argentina, que se identifica como o país branco e Europeu da America Latina, a negritude e tudo que não se encaixe na branquitude Argentina é visto como estrangeiro (extranjero/a), e portanto inferior. Examinando a história de uma de suas entrevistadas ao relatar que sua família “tinha sido branca,” Geler argumenta que o conceito de mestiçagem não possui espaço porque a mistura de povos identificados como racialmente brancos e negros não resulta em “mestiços/as” ou “mulatos/as.” Pelo contrário são “diluídos” eventualmente pela branquitude até que preenchem todos os requisitos para ser branco, a raça dominante do país.[28] Seu estudo de caso sugere que, ao contrário de outras realidades de mestiçagem mencionadas anteriormente, na Argentina, o termo precisa ser compreendido à luz de uma transição (ou absorção) para aquilo que é criollo/a. Biologicamente falando, mestiçagem descreve a mistura de duas ou mais raças. Socialmente, no entanto, representa o terreno transitório pelo qual uma pessoa transita de sua negritude racial, socioeconômica, e cultural para uma categoria estrita de criollo/a. Neste ponto, Marilyn Grace Miller genialmente descreve mestiçagem na Argentina com a metáfora do tango: uma dança que originou com escravos Africanos no país mas que foi absorvida e promovida como dança Euro-Americana de criollos/as que sucederam em remover suas origens Africanas.[29]
Geler afirma que esta ausência de mestiçagem se deve à uma ideologia nacional que por muito tempo tem promovido a imigração europeia como uma “melhora” para a nação por meio da mistura biológica e cultural melhorando desta forma as categorias binômias raciais que impossibilitam o desenvolvimento espaço intersticial mestiço/a.[30] Em outras palavras, mestiços/as na Argentina estão inseridos em uma dicotomía robusta entre negro e branco, sustentada pela forte preferência do país pela branquitude e assim não podem permanecer no meio termo e assumir seu próprio papel, mas precisam se mudar para um ou outro extremo mais cedo ou mais tarde. No entanto, embora Geler habilmente problematiza esta categoria binômia, ela omite a realidade de Argentinos Asiáticos no país que são nem brancos ou negros, mas imigrantes perpétuos apesar de sua nacionalidade Argentina. Embora Asiáticos não sejam racialmente negros, seus fenótipos asiáticos e bagagem cultural de “não assimilação” os excluem da branquitude Argentina ou até mesmo da fase transitória de mestiçagem, a menos que diminuem suas características Asiáticas. Portanto, criollos/as os categorizam na categoria artificial de imigrantes dentro deles Judeus e Árabes porque não se encaixam na dicotomía estrita e são muito diferentes para se encaixar na categoria de mestiços.
E. É Possível Encontrarmos um Ponto em Comum?
As várias perspectivas de mestiçagem apontam para um fato de ser um termo com duas caras como o rosto de Janus[31] que não se pode reduzir à uma categoria monolítica que represente todas as populações Latino/as nos EUA e America Latina e seus diversos e complexos processos de formação identitária.[32] Por um lado, mestiçagem parece impossível em um país como a Argentina onde as categorias raciais são firmemente divididas e onde o favoritismo branco é prevalente. Por outro lado, mestiçagem envolve ideais políticos empregados por elites e um processo de assimilação e embranquecimento que muitas vezes obscurece a alienação dos povos indígenas. Nos EUA, mestiçagem conforme desenvolvida por diversos teólogos Latinos/as é utilizado para denunciar a marginalização e opressão de Latino/as e promover seu empoderamento, chamando a uma práxis de solidariedade e resistência contra sistemas estabelecidos de opressão.
Portanto, posso concluir que mestiçagem é um conceito extremamente contextual que traz a tona vários problemas para discussão. No entanto, tal complexidade não significa ou substitui um ponto de vista por outro. Pelo contrário, reconhecer a contribuição importante de teólogos e eruditos Latino/as, o campo contestado de mestiçagem sugere que o conceito deve ser empregado com muito cuidado e contextualmente tendo em mente que devido à sua natureza complexa e maleável, lacunas vão permanecer. Conforme Vásquez propiciamente notou que deve haver um reconhecimento dos “silêncio, exclusões, e assimetrias de poder que perpassam todo e qualquer processo discursivo formativo de mestiços/as.”[33]
Neste ponto, eu poderia sugerir que a despeito de sua variedade e complexidade, o conceito de mestiçagem assume uma mistura de duas ou mais raças e culturas e um estado de identidade intersticial da parte de mestiços/as na maioria dos casos. Dependendo do contexto, o conceito eventualmente serve como ferramenta para resgatar a dignidade de povos marginalizados, ou como um símbolo justificando sua opressão.
F. As Realidades de Asiáticos Latino/as
É interessante que salvo poucas obras de alguns teólogos e eruditos Latino/a que mencionam corriqueiramente as contribuições Asiáticas para a composição de comunidades Latino/a, Asiáticos/as Latino/as não receberam a merecida atenção nos debates a respeito deste assunto. No entanto, conforme mencionado acima, a presença de imigrantes Asiáticos nas Américas remonta ao século 19 e até mesmo aos anos 1560, quando as primeiras instãncias da chegada de Filipinos ao continente Norte Americano foram registrados.[34]
Será que o conceito de mestiçagem se aplica as realidades de Asiáticos Latino/as na America Latina e nos EUA? Nas paginas seguintes, descrevo três casos de Latino/as Asiáticos em diferentes partes da America Latina para fazer o argumento em favor de sua identidade mestiço/a. O critério para avaliar se o conceito se aplica a eles é baseado no conceito popular e comum do termo mestiçagem: apesar da complexidade e uso contestado, mestiçagem pressupõe o encontro de duas ou mais raças e culturas e um estado de identidade intersticial para a maioria de mestiços/as. Dado a diversidade de Asiáticos Latino/as, os casos seguintes não servem como casos representativos de toda população de Latino/as Asiático. Além do mais, embora este ensaio apresente os três casos de maneira conjunta, não devem ser amontoados em uma categoria única. Pelo contrário, devido a suas particularidades históricas e culturais, cada um merece uma análise contextual e uma examinação mais precisa.
1. Imigrantes Japoneses e seus descendentes no País da Miscigenação
Examinando o retorno de Brasileiros de ascendência Japonesa e o papel da religião em suas negociações com sua identidade, o antropólogo Suma Ikeuchi descreve a chegada dos imigrantes Japoneses no Brasil em 1908 sendo substitutos por imigrantes europeus como trabalhadores assalariados de campo. Embora seu livro, Jesus Loves Japan, seja sobre o retorno de migrantes Nipo-Brasileiros, ela também analisa o status social ambíguo de imigrantes Japoneses no início de seu fluxo migratório, algo que continua até os dias de hoje. A estrutura racial geral do país permitiu que fossem vistos como mais brancos e mais desejáveis do que negros, mas ao mesmo tempo incapazes de ser assimilados por causa de sua origem Asiática fenótipica e traços culturais.[35]
Hoje o Brasil é bastante conhecido por apoiar a miscigenação étnica como seu ideal nacional que brota das ricas e diversas culturas, etnias, e comidas do país. De fato o Brasil, junto com México tem promovido a mestiçagem e fortalecido seus valores positivos no país, o que tem resultado em formas menores de racismo e “uma visão robusta de multiculturalismo.”[36] No entanto, embora os Nikkei Brasileiros (Brasileiros de ascendência Japonesa) se vêem primariamente como Brasileiros antes do que Japoneses e casamentos interraciais são mais comuns entre estes do que com imigrantes mais velhos, a maioria Brasileira ainda confunde Nikkei Brasileiros com “Japoneses.” Isto é, a palavra “Japonês” no Brasil inclui tanto Brasileiros Nikkei quanto cidadãos Japoneses que vivem no Japão.[37] Este termo ambíguo reflete a identidade mestiço/a: Isto significa que embora muitos Nikkei, agora em sua terceira ou quarta geração conseguiram alcançar uma significativa mobilidade social e consideram o Brasil sua pátria, eles ainda são percebidos como Brasileiros hifenizados ou até mesmo como “o Outro Oriental inassimilável” pela maioria.[38] Além do mais, embora alguns escolham migrar para o Japão, eles ainda carregam sua identidade mestiço/a ao sofrerem hostilidade de Japoneses nativos e desconforto linguístico e cultural. Em outras palavras, sua mestiçagem Asiática e Latino Americana é ressaltada: Brasileiros de nascença, Japoneses de sangue.[39]
2. Imigrantes Chineses e seus Descendentes no País da Mestiçagem
A imigração Chinesa ao México possui longa precedência histórica. Em 1899, a China e o México assinaram o Tratado de Amizade, Comercio e Navegação, permitindo a entrada e naturalização de trabalhadores Chineses no México. De fato, a imigração Chinesa ao México se assemelha ao Ato de Exclusão Chinesa Norte Americano de 1882 e o Programa Bracero dos EUA de 1943. O Ato de Exclusão Chinesa obstruiu a entrada de Chineses no país salvo certas classes, o que divertiu o fluxo migratório Chinês ao México. No entanto, eles também não foram bem-vindos ao México. Discriminação racial e xenofobia em conjunto com legislação anti-Chinesa passada no México alvejaram imigrantes Chineses na esfera nacional de 1916 à 1934. Por exemplo, embora o Programa Bracero permitisse milhares de Mexicanos trabalharem no México––criando um caminho para a mobilidade social para estes e suas famílias, Sino-Mexicanos era geralmente excluídos do programa. Este ato de exclusão deve-se ao fato de que muitos Mexicanos permanecerem no México––apesar da campanha anti-Chinesa neste país––não possuíam a documentação necessária tanto para residir no país quanto para viajar para os EUA. Além disso, o governo Mexicano considerava os Sino-Mexicanos como imerecedores de salários mais altos ou de mobilização social para melhores condições.[40]
Apesar de sua adaptação cultural e fluência linguística, Sino-Mexicanos foram tratados como inassimiláveis. Por exemplo, casamento entre Chineses e Mexicanos não eram somente raros mas sofriam preconceitos raciais. Mulheres Mexicanas casadas com homens Chineses sofriam marginalização social.[41] Surpreendentemente, tal convicção da incompatibilidade do Chinês no México brota da própria ideia de mestiçagem. Fredy Gonzales afirma que para os Mexicanos, “os Chineses eram inassimiláveis, particularmente em um país construído no ideal mestiço/a de mistura racial entre Espanhóis, Índios nativos e Africanos.”[42] Em outras palavras, o ideal de mestiçagem baseado em ancestralidade biológica e fenotipica não inclui Sino-Mexicanos como parte da nação mestiço/a. Semelhantemente, casamentos entre Chineses e Mexicanos sofreram acusações de que os Chineses não somente estavam ameaçando a honra de mulheres Mexicanas, mas que tais casamentos também estavam ameaçando a raça Mexicana por produzir “fracas e degeneradas crianças.”[43]
Embora as condições tenham melhorado significativamente desde sua chegada e estabelecimento, a marginalização de Sino-Mexicanos continua– Sua Mexicanidade não tem sido reconhecida. Por exemplo, como Adrian H. Hearn afirma, comunidades Chinesas e seus negócios com parceiros comerciais na China são vistos como ameaça aos interesses nacionais. Muitas comunidades Chinesas se deparam com hostilidade pública e acusações na mídia nacional onde são percebidos como um outro homogêneo, a despeito de sua diversidade étnica, política e econômica.[44] Esta atitude antagonista demonstra que a despeito de quanto tempo eles viveram no país ou como eles definam sua nacionalidade e pertencimento, Mexicanos Chineses são até certo ponto não completamente aceitos como Mexicanos. Pelo contrário, eles são considerados imigrantes ou descendentes de imigrantes, e são muitas vezes associados à imagem negativa de invasão comercial Chinesa.[45] Esta rejeição intencional revela o aspecto exclusivista de mestiçagem no qual mestiços/as são medidos de acordo com categorias biológicas e fenótipicas fixas que resultam na recusa de entrada de raças estrangeiras nesta categoria.
3. Imigrantes Sul Coreanos e seus descendentes no País “Branco Europeu”
Ao contrário do que se percebe no México, onde a ideologia nacional foca na mestizaje ou do Brasil da miscigenação, a Argentina tem sido historicamente considerado um país “Branco Europeu” do cone Sul. Além do mais, comparada com Chineses e Japoneses, a imigração Sul Coreana (daqui em diante Coreanos) para a Argentina começou muito mais tarde em meados dos anos 60 com seu aniversário de cinquenta anos sendo celebrado em 2015.
É bem sabido que o discurso nacional Argentino foi a de uma “Europa na America do Sul.” Como o sociólogo Won K. Yoon notou, tentativas em imitar a Europa se revelam na maneira que o país lidou com a chegada de imigrantes não europeus. O governo queria preservar a cultura Europeia e, consequentemente, imigrantes da Ásia e África foram considerados os menos desejáveis visto que eram os mais diferentes ao contrário dos “superiores” Europeus.[46] Este favoritismo europeu presente na história Argentina em conjunto com uma imagem geralmente negativa dos Coreanos criado pela imprensa Argentina, que promoveu uma associação negativa entre Coreanos e exploração de trabalho, evasão de impostos, e hábitos de comer cães dentre outros, não criou uma atmosfera favorável aos imigrantes Coreanos e seus descendentes. De maneira não surpreendente, Argentinos Coreanos relatam um índice maior de preconceito em espaços públicos como escolas e oficinas estatais comparado aos seus conterrâneos no Brasil. Tal condição aumenta seu isolamento em guetos étnicos e limita sua interação com a população local.[47]
Semelhantemente, em seu estudo do forte favoritismo branco inculcado na identidade nacional Argentina e no discurso público, Junyoung Verónica Kim analisa a posição intersticial de mestiçagem que imigrantes Coreanos e seus descendentes ocupam em relação a brecha entre cidadania política e inclusão social.[48] Embora muitos de seus entrevistados Coreanos Argentinos respondessem que fossem Argentinos com passaporte Argentino e que sua relação com a Coreia se restringisse preponderantemente a Coreanos da Argentina, no imaginário nacional, ainda é sua identidade Coreana e Asiática com todos os estereótipos associados que vem primeiro ao invés de sua identidade Argentina apesar de décadas de história de imigração.[49]
Vale a pena notar que embora os casos acima se concentrem exclusivamente no desafios que Latinos/as Asiáticos vivenciam, eu reconheço que parte da imagem negativa de certas comunidades Asiáticas é devido ao seu isolamento intencional e falta de compromisso com a comunidade local. Alem disso, como este ensaio se limite à identidade mestiça de Asiáticos Latino/as, as narrativas foram selecionadas para demonstrar da melhor forma possível a presente e severamente não reconhecida identidade mestiça de Latinos/as Asiáticos e Latinos Asiáticos em diferentes contextos nacionais. Finalmente, é importante mencionar a contribuição feita pela experiência única de Asiáticos Latinos/as nos casos anteriormente mencionados: Suas realidades revelam que hierarquias étnicas e raciais são problemas sérios na America Latina até mesmo em países onde mestiçagem serve como ponto chave da identidade nacional. Portanto, a presença de Asiáticos Latinos/as e de Asiáticos Latino Americanos problematiza a romantização do termo que ignora a marginalização. Finalmente, embora abrem o caminho para outras realidades Latino/as não representadas, também desafiam qualquer pressuposição ingênua de mestiçagem como uma união harmoniosa de diferentes raças e culturas.
G. Identidade Mestiço/a
Conforme mencionado acima, os critérios de mestiçagem se tratam da mistura de uma ou mais raças e culturas e um estado de identidade intersticial da parte dos mestiços/as. Em seguida, tentarei mostrar que as realidade de Asiáticos Latinos/as, ou pelo menos aquelas apresentadas acima preenchem esses critérios e examinar suas identidades mestiço/a em particular através do prisma de uma consciência tripla, um conceito analítico explorado anteriormente por Néstor Medina.
Segovia está certo em dizer que mestiçagem geralmente implica “dois lugares e nenhum lugar onde se possa fixar.”[50] De fato, a experiência de mistura de raças e culturas da Ásia e America Latina deu origem à um espaço único de identidade e cultura onde mestiços/as puderam se situar. No entanto, conforme visto acima, o processo de tal encontro nem sempre foi pacífico e harmonioso. Pelo contrário, o processo de mistura ocorre em um espaço precário intersticial ou em um estado de “um ou o outro” que é criado pela atitude exclusivista e humilhante contra mestiços pela a maioria da terra nativa assim também como a falta de identificação própria e conectividade de mestiços/as com suas terras nativas.
Eu sugiro que a mistura e intersticialidade de Asiáticos Latino/as é geralmente composta por dois elementos. Um deles é a rejeição persistente por parte da maioria das pessoas de seus países de moradia com respeito a suas identidades nacionais (i.e., sua Argentinidade, Mexicanidade, ou Latinidade) e, devido a suas características fenótipicas e estereótipos, uma relutância em aceita-los como compatriotas no sentido pleno, apesar de sua cidadania política. O outro elemento é a distância geográfica e emocional de suas terras ancestrais. Esta alienação é particularmente aguda na segunda e subsequentes gerações cujos passaportes indicam que sua nacionalidade não é mais Asiática mas Latino Americana, cuja língua materna não é necessariamente aquela de seus pais e cuja conexão com sua terra ancestral, na maioria dos casos é limitada a uma comunidade étnica em seu país de nascença.
Em tal complexa mistura de Latinidade pouco representada e Asianidade imigrante, uma nova consciência surge, ou como Elizondo sugere, um novo povo aparece com o potencial de abraçar ambas as culturas. Muitas vezes, a auto percepção de Asiáticos Latino/as de sua Latinidade e Asianidade se torna mais visível em um terceiro espaço. Conforme Homi Bhaba diz, uma terceiro espaço é uma área de negociação onde múltiplas forças que formam a identidade de uma pessoa venham a tona. Embora eu não utilize o termo no sentido estritamente pós-colonial, onde forças complexas de colonizador e colonizado estão embutidas, eu enfatizo a intersticialidade de um terceiro espaço geográfico, neste caso os EUA, onde a criatividade e complexidade de mestiços/as Asiáticos vem plenamente à luz e a renegociação dos elementos de sua identidade ocorre. É neste espaço onde sua identidade mestiços/as, a junção de sua Latinidade e Asianidade simultaneamente emergem e são reexaminadas. Este conceito se torna mais nítido quando é visto em conexão com uma consciência tripla.
Em sua análise de mestiçagem, Medina afirma que a consciência Latino/a pode ser definida como consciência tripla ao invés de consciência dupla conforme articulado primeiramente por Dubois. Latinos/as dos EUA compartilham muitas semelhanças com Latino Americanos embora rejeitados por estes. Além do mais, são nascidos nos EUA, mas são negados participação social pela cultura dominante Anglo-Europeia. Acima de tudo, estão cientes de sua existência ambígua.[51]
De fato, Asiáticos Latinos/as compartilham desta consciência tripla, mas de uma maneira um pouco mais distinta. No terceiro espaço, eles se tornam conscientes de sua identidade Asiática especifica. Embora sejam automaticamente taxados de Asiáticos pela cultura dominante, sua identidade Asiática poderá ser diferente daqueles com os quais eles compartilham da mesma raça e etnia. Por exemplo, em uma sociedade onde categorização racial possa ser baseada em aparência como nos EUA, Asiáticos Latino/as automaticamente são taxados na categoria ampla de “Asiático” com todos seus estereótipos, apesar da brecha significativa entre sua auto identificação e as categorias raciais da sociedade. Tal categorização monolítica esquece que sua característica biológica Asiática não está relacionada diretamente com a Ásia, mas com uma comunidade particular na America Latina. Eles são Asiáticos de certa forma, mas não são da Ásia, nem pertencem a uma categoria existente de Americanos Asiáticos conforme empregada nos EUA. No terceiro espaço, Asiáticos Latinos/as se tornam conscientes de sua identidade Asiática particular, e quão dissonante esta é da categoria criada e imposta pela sociedade dominante que reduz o termo somente a pessoas da Ásia ou cidadãos Americanos de ascendência Asiática.
Embora haja certa dificuldade em identificar sua identidade Asiática particularmente no terceiro espaço, a aparente invisibilidade da Latinidade de Asiáticos Latinos/as assume proeminência. Muitos nascem ou passam mais tempo na America Latina do que na Ásia, mas a cultura dominante rejeita sua identidade nacional de Mexicano our Argentino, por exemplo. No terceiro espaço, embora sua identidade Mexicana ou Brasileira seja escondida detrás de seu fenótipo Asiático, sua fluência em Espanhol ou Português, familiaridade com os costumes de seu país Latino Americano de origem, praticas religiosas populares, e consumo de comidas étnicas, reforça sua flexibilidade identitária. Com respeito a este ponto, Erika Lee argumenta que Latinos/as Asiáticos tem contribuído para a criação de novas comunidades e identidades nos EUA. Em Los Angeles, por exemplo, ela afirma que “estes Asiáticos Latinos podem extrair de uma alta concentração de serviços multi-linguísticos e expressar sua Latinidade, ou ‘Latinounicidade’ ao tentar honrar e expressar tanto sua herança Asiática quanto Latina nos Estados Unidos.”[52]
Em outras palavras, no terceiro espaço, Latinos/as Asiáticos se encontram em uma posição singular na qual podem ser chamados tanto de Latinos/as e Asiáticos ou Latino Americanos e Asiáticos como seus conterrâneos. Embora sua Latinidade esteja longe de encontrar representação dentro de comunidades Latino/as nos EUA, muito menos na percepção pública, eles ainda mantêm sua herança linguística e cultural Latino/a e possuem a capacidade de se identificarem como Asiáticos e Latinos/as, como resultado da mistura de dois mundos dentro deles. Ao mesmo tempo, embora a categoria de “Asiático” imposta pela sociedade dominante não inclua seus traços Asiáticos específicos, sua herança Asiática os permite se integrar nas comunidades Asiáticas dos Estados Unidos da America.
Finalmente, eles também estão cientes de que há “algo mais.” Examinando imigrantes Coreanos Argentinos transnacionais que migraram para um terceiro país, e a tensão de identidade que tal mobilidade geográfica evoca, Carolina Mera afirma que estes imigrantes transnacionais desafiam a ideia de identidade nacional baseada na territorialidade e estilo de vida sedentário. Sua complexa negociação de identidade, que é resultado do que ela chama de “Êxodo duplo,” primeiro da Coreia e depois da Argentina, cria uma auto-consciência que o binômio implista de Asiático ou Latino não possa plenamente capturar.[53]
No entanto, conforme a ideia de mestiçagem no contexto dos EUA é estabelecida, ser diferente não necessariamente implica ser defeituoso ou inferior. Pelo contrário, significa, nas palavras de Elizondo, de certa forma, o surgimento (ou redescoberta) de um novo povo. A consciência tripla de Asiático Latino/as mestiço/a, não apenas cria novas identidades nos EUA como Lee afirma, mas questiona o mecanismo de mensuração e categorização racial da nossa sociedade avaliada apenas por fenótipos, e que neglicencia a maneira como uma pessoa se percebe, o que em última instância leva a estereótipos e disparidade racial.[54] Finalmente, Asiáticos Latino/as possuem o potencial para transcender tais categorias raciais e estereótipos culturais impostos, ao passo que contestam noções homogêneas de mestiçagem.
H. Asiáticos Latino/as como Mestiços/as: Um pingo no Oceano
Algumas importantes qualificações precisam ser mencionadas. Primeiramente, o conceito de Asiático Latinos/as como mestiços/as corre o risco de se tornar mais uma categoria monolítica que cria o falso senso de unidade dentro dos numerosos grupos de Latinos do leste Asiático nas Américas, e assim ignora suas particularidades étnico-culturais. Enxergar Asiáticos Latinos/as como um singelo grupo uniforme ignora seriamente o fato de que nem todos os descendentes de imigrantes Asiáticos se identificam como “mestiços/as.” Neste aspecto, deve ser lembrado que tal risco não tange necessariamente somente os Asiáticos Latinos/as exclusivamente mas é algo com o qual todo discurso de mestiçagem precisa lidar.
Além do mais, tal generalização não leva em conta as diferenças entre Asiáticos e Latinos/as nos diferentes contextos, assim como os conflitos intra-asiáticos-latino/a e intra-Ásia-America Latina. Por exemplo, a experiência de imigrantes Coreanos no Brasil, um país mais racialmente inclusivo, pode ser significativamente diferente daquela no Chile ou na Argentina. Além disso, Cubanos Chineses, que possuem historicamente um dos mais extensos assentamentos de Asiáticos na America Latina, necessariamente possuem um status social diferente dos Chineses com relativamente pouca história de passagem em outras partes da America Latina.
Finalmente, minha intenção primaria é criar uma plataforma para as vozes de Asiáticos Latino/as que de outra forma não seriam escutadas empregando seu aspecto comum de mestiçagem, embora tendo em vista que nem todo Asiático Latino/a ou Asiático Latino Americano sentirá da mesma forma com respeito a sua identidade ou contexto. Portanto, a palavra chave é comunidade, um conceito que ressoa com muitos e não universalidade, como se a mestiçagem fosse característica que todo Asiático Latino/a precisa ter na mesma medida.
Portanto, eu não pretendo acrescentar outra raça ao discurso de uma gota no mar. Pelo contrário, pretendo desafiar concepções homogêneas de qualquer grupo mestiço/a e rejeito uma classificação simplória e a imagem hegemônica de mestiçagem determinada pela concepção visual e ancestralidade biológica. Eventualmente, eu espero criar um ímpeto para a representação das vozes de outros grupos mestiço/as como os diversos mestiços Judeus e Árabes e convida-los a narrar suas próprias histórias de mestiçagem.